A compreensão da imaturidade de um bebê humano e de sua dependência do ambiente, sustenta na teoria de Winnicott não só a necessária provisão suficientemente boa para o processo de amadurecimento pessoal e emocional nos estágios iniciais de uma vida, mas também para o necessário manejo clínico no sentido de curar-cuidar .
Para este autor a cura se desdobra e se sustenta no cuidado. Tal cuidado aponta não para consertar o errado e eliminar os sintomas, mas sim para o favorecimento da continuidade do ser no sentido de um existir por sentir-se vivo e real, assim como nos estágios iniciais para a conquista de uma personalidade unitária.
Winnicott convida a refletir sobre a dinâmica ou situação que se estabelece na relação “doente” e o profissional da saúde, pois o doente, de volta a uma condição de dependência, leva naturalmente o profissional para a posição dos que respondem às necessidades, ou seja, à adaptação, à preocupação e à confiabilidade, cura, no sentido de cuidado. E sugere que os profissionais se especializem em “curar – cuidar”, que é uma extensão do conceito de “sustentar” (holding), mais do que em “curar erradicando agentes do mal”. Lembra também que apliquemos um tratamento, mas facilitando o crescimento.
Winnicott (1999) diz que o “sustentar” pode ser feito, com sucesso, por alguém que não tenha o menor conhecimento intelectual daquilo que está ocorrendo com o indivíduo, e o que se exige é a capacidade de se identificar, de perceber o que se sente. Assim como a mãe suficientemente boa que se identifica e se adapta ao bebê para prover suas necessidades, antes, de apenas ser.
A ausência de doença ou sintomas não é para Winnicott equivalente a ter saúde ou estarmos bem, pois podemos existir “saudáveis” e mesmo assim, não nos sentirmos vivos…
Sempre em descrição dos estágios iniciais do desenvolvimento humano na clínica pediátrica e na psicanálise dos quadros psicóticos, Winnicott não considera o funcionamento fisiológico como sendo atestado de um ser se sentir vivo, quer seja um bebê ou um psicótico. Esta reflexão é um apontamento para a importância que este autor dá para conquista do ser humano em alcançar o status de uma personalidade unitária. Ou seja, de um indivíduo crescer emocionalmente, sentir-se espontâneo e criativo e conseguir compartilhar com os outros e com o mundo a realidade externa a partir da realidade de seu si mesmo. Para tanto, um longo processo se faz necessário e este é completamente dependente do ambiente para se efetivar. No entanto, seja no início de nossas vidas enquanto bebês para alcançarmos a saúde na continuidade do nosso ser, seja, no adoecimento por um crescimento emocional interrompido, a dependência ambiental é fundante e pressupõe que haja vivência de confiabilidade.
Justificativa
Um ambiente confiável, previsível no sentido de atender as necessidades favorece a continuidade do ser e esta experiência para Winnicott é a base para o ingresso criativo na vida e tão cara ao ser humano para gozar de saúde. Ou seja, um ambiente confiável é a base para que o amadurecimento emocional, segundo Winnicott, se inicie e prossiga em desenvolvimento até a aquisição de uma personalidade unitária que futuramente, favorecerá a pessoa o sentimento de ser real e espontânea.
É também esta qualidade ambiental o sustento que cuida e propicia a cura quando a doença interrompeu o amadurecimento emocional de uma pessoa.
Quando o ambiente fracassa, se perde a continuidade de ser e a tendência inata a integração e ao desenvolvimento; segundo Winnicott, etapas do amadurecimento pessoal não são conquistadas como, no estágio de dependência absoluta, a aquisição da integração no tempo e espaço, da personalização, do início das relações objetais, da constituição do si mesmo primário. Reações contra a invasão do ambiente são erigidas como defesas e, o amadurecimento emocional paralisa. Nestas circunstâncias, o ambiente deverá favorecer condições especiais para possíveis integrações do amadurecimento que foram interrompidas. Ou seja, o ambiente deverá ser confiável, previsível, adaptado às necessidades daquele ser humano.
No cuidado com pessoas que padeciam de casos graves como a esquizofrenia, Winnicott apontou para aspectos essenciais da existência humana como a dependência, a necessidade de ser sustentado por ambiente confiável, previsível e adaptado, assim como a mãe na relação com o seu bebê nos estágios inicias do desenvolvimento da vida psíquica.
Objetivo
Este trabalho tem como objetivo apresentar,segundo a teoria de Winnicott, a compreensão e atitude clínica assentadas no cuidado ético para favorecer o curar. Ou seja, para o favorecimento da retomada do amadurecimento psicossomático.
Desenvolvimento
No exercício da clínica pediátrica e psicanalítica, Winnicott correlacionou aspectos dos transtornos emocionais que os bebês manifestavam em momento de dependência e imaturidade e os distúrbios de tipo esquizofrênico. Refletia sobre o quê capacita um bebê, nos estágios iniciais, estabelecer, no futuro, relação com a realidade externa e mesmo assim, manter sua pessoalidade e liberdade. Pois o quê falta às pessoas que sofrem de distúrbio psicótico não é propriamente chegar ao princípio de realidade e sim, alcançar um sentido de realidade do si–mesmo.
…suas dificuldades e problemas são especialmente aflitivos, assinala o autor, pois “não fazem parte da vida, mas sim da luta para alcançar a vida […]” (1990/1988, p. 100). Diz ele ainda, em outro texto: “Há pessoas que passam a vida não sendo, num esforço desesperado para encontrar uma base para ser” (1984b[1966]/1987, p. 116). (Apud DIAS, 2010)
– A Natureza do Ambiente
De início, o bebê e o objeto são um, não há o objeto e o sujeito separadamente; eles são um e isso precede a idéia de ser em união com algo/alguém. … à medida que o bebê cresce, nenhum sentimento do eu (self) surge, exceto na base desse relacionamento no sentimento de SER.(WINNICOTT, 1975, p.114)
Winnicott utiliza o termo objeto subjetivo para descrever este primeiro objeto que ainda não é repudiado como fenômeno não-eu. Neste relacionamento encontra-se também o conceito de elemento feminino puro para traduzir a experiência de ser.O bebê é o seio e esta experiência de identificação primária tem importância vital para o início de todas as outras experiências subseqüentes de identificação, como o estabelecer contato com a realidade externa. No entanto, a realidade externa embora tenha sua raiz na realidade subjetiva, só fará sentido como tal, depois de um longo caminho percorrido pelas etapas de dependência e independência relativas, passando pelos estágios da transicionalidade, do uso do objeto, do estágio EU SOU, do concernimento e do estágio edípico.
Em um ambiente favorável à experiência do elemento feminino puro de apenas ser, é que a criatividade originária pode brotar do bebê e ingressá-lo no estar vivo no sentido de começar a existir.Compreendendo este existir, segundo Winnicott, como uma longa conquista pelos estágios iniciais do amadurecimento emocional e que, em síntese, passa pelo processo elaboração imaginativa das funções corpóreas que aos poucos se traduz em um sentimento de que dentro daquele corpo existe uma pessoa.
Para tanto, o ambiente deve proporcionar as adaptações e corresponder às necessidades deste estar vivo do bebê. Neste momento, o ambiente é a mãe suficientemente boa em uma atitude de preocupação materna primária. Ou seja, por estar identificada com as necessidades de seu bebê, adapta-se e deixa-se ser usada. Assim, o bebê necessitado, busca e cria o seio, a mãe e a ele próprio..…de modo que o impulso criativo possa tomar forma e o mundo seja testemunha dele”. (WINNICOTT, 1975, p. 100).
Em contraste, a relação com o objeto do elemento masculino puro indica uma separação (o eu do não-eu), mecanismos mentais mais complexos estão disponíveis como também satisfação do id, incluindo a raiva relativa a frustração; estes impulsos acentuam a separação e objetivação do objeto. Agora não é mais só a experiência de ser, mas de fazer.
Para favorecer uma identidade inicial, é fundamental que o ambiente, a natureza da relação com objeto possa se dar com a experiência de um seio/objeto feminino, podemos dizer mais receptivo do que ativo. Dessa maneira, o bebê também pode ser e ter seu impulso criativo recebido pelo mundo, confirmando o seu viver. Mas quando o ambiente não favorece as condições necessárias para o impulso criativo, o bebê tem que se desenvolver sem a experiência de apenas ser e assim, seu processo de amadurecimento psicossomático e emocional é interrompido pelo fazer, ou melhor, pelo reagir às falhas ambientais.
– O ambiente e a criatividade originária
A criatividade para Winnicot se relaciona ao sentimento do estar vivo, a capacidade do indivíduo se tornar uma pessoa ativa em comunidade na realidade do mundo. Assim, o viver criativamente constitui um estado saudável, ao contrário, a submissão é a base para uma vida doentia. A boa aventura é ser nem submisso ao mundo, nem amortecido em seus sonhos, ou seja, aderir sem se apagar, sem se diluir…
A criatividade originária pode ser abortada logo na saída, em momentos muitos primitivos e que rompem com a possibilidade de sentirmos vivo frente a realidade externa. Mas, a criatividade pode ser furtada em momentos tardios no crescimento pessoal (indivíduos dominados no lar, perseguições, regime político etc); quando se perde ou não se tem isso, há o sentimento de que a vida é irreal, impessoal ou que não é significativa.
Winnicott se interessa pela etiologia da perda deste ingresso criativo na vida ou da primeira abordagem criativa aos fenômenos externos com as nuances e variações da provisão ambiental. Há indivíduos que vivem criativamente e sentem que a vida merece ser vivida e há outros que duvidam sobre a liberdade e o valor do viver. Este fato se relaciona a qualidade e a quantidade das provisões ambientais no começo, nas fases primitivas da experiência de vida de cada bebê.
Portanto, a realidade externa compartilhada entre os homens, é uma conquista singular de cada bebê que virá a ser um adulto, pois, antes dessa (realidade) ser objetivamente percebida, ela é subjetivamente concebida… Este fato traduz a importância que Winnicott dá para os estágios iniciais do desenvolvimento humano em relação de dependência absoluta com o meio ambiente e a forma singular que ele compreende o processo saúde, doença e cura em relação a vivência de continuidade de ser, notadamente, na experiência de se sentir vivo.
– As diferenças entre Freud e Winnicott em relação a cura
Para Freud, cada indivíduo deve superar o que seria a tendência ao infantilismo, ou seja, o apego ao princípio do prazer, e enfrentar o princípio de realidade; deve dominar os instintos – ali onde está o id, deve estar o ego –, aceitar e saber lidar com as frustrações que a realidade impõe, tornando–se autônomo e não escravo dos desejos, sobretudo os infantis, estando à altura de forjar, dessa forma, o seu próprio destino. Qualquer facilitação, ou mimo, que o analista ofereça, desencaminha o paciente e o enfraquece para o que é a sua tarefa central; concebe que o paciente, quando pode, agarra–se ao bom e não quer sair do lugar. Fica retido no bem–bom(Apud Elsa).
Sua teoria está baseada no princípio do prazer, no estudo do psiquismo e do aparelho psíquico e sua atenção foi voltada para a dinâmica pulsional, supra estrutural e intrapsíquica, sendo a cura o alcance da autonomia.
Já Winnicott, direcionou seus estudos para a tendência ao amadurecimento da natureza humana, para a história real das relações de um indivíduo com seu meio ambiente, desde o início da vida. A questão para Winnicott não é infantilismo, não é o prazer ou a frustração na impossibilidade de alcançá-lo, é imaturidade e a dúvida da realidade ou irrealidade da existência. Acredita que quando recebe o que necessita, o bebê, assim como o paciente, incorpora os cuidados ambientais, e vai em frente em seu crescimento.
– A Cura e a Ética do Cuidado em Winnicott
“Acredito que “cura”, em suas raízes, signifique cuidado” (WINNICOTT, 1999, p.105). Winnicott apontou que a compreensão de cura como erradicação do mal pela prática médica, sobrepôs o seu significado de cuidado. Tentou explicitar nas áreas médicas a necessidade de integrar as ações de cuidar e curar, sem com isto, desconsiderar o valor de um tratamento eficaz como a pinicilina ou de uma intervenção cirúrgica. Mas refletia que como pensadores, não deveríamos deixar de tentar uma abordagem holística e humana. Desta forma, Winnicott apontava para a importância da relação pessoal no cuidado aos pacientes, mostrando que nesta condição, eles são totalmente dependentes do profissional que ocupa a posição de atender as necessidades. Ainda apontava que esta condição em nada poderia significar superioridade, pois havia uma dependência mútua no sentido de que para ocupar a posição de curador, necessita-se de alguém a ser curado… Em todas estas reflexões, o autor desvela a necessidade de se colocar no lugar do outro, do profissional se colocar no lugar do paciente em uma postura empática para conseguir se preocupar, se adaptar e responder as necessidades, como uma mãe suficientemente boa. Criando com isto, um ambiente de confiabilidade e cura no sentido de cuidado que favorece o amadurecimento ou a retomada dele.
Considerações Finais
Portanto, o sentido da cura para Winnicott passa pela possibilidade de favorecer o crescimento de uma pessoa, sustentando no cuidado as possíveis integrações para o retorno da continuidade do ser. Não significa, portanto, extinguir sintomas ou facilitar uma autonomia como acreditava Freud. O foco da cura em Winnicott está no favorecer o amadurecimento e este pressupõe cuidado.
Este cuidar-curar é uma extensão do conceito de holding de segurar, tão fundante na teoria de Winnicott por explicitar a necessidade e dependência que o ser humano tem do ambiente. Pois necessitamos da relação humana confiável para amadurecermos, necessitamos também desse cuidado para nos curarmos.
Dependência e confiabilidade são aspectos contemplados no cuidar. Winnicott elaborou a dimensão desses dois fenômenos, inicialmente, na relação mãe-bebê e depois nos casos onde o paciente regride à dependência. No entanto, o cuidado é uma necessidade vital de todo ser humano em sua trajetória existencial, desde o nascimento até a morte. Nesta jornada, muitas vezes a doença surge como busca de uma nova provisão ambiental onde o cuidar possa favorecer o retorno ao crescimento e assim, à cura; não no sentido de preservar a vida autônoma e real a qualquer custo, mas, pela manifestação do si mesmo que dignifica o viver.
Bibliografia
__ Winnicott, Donald W (1979) O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983.
– “Os objetivos do tratamento psicanalítico”
__ Winnicott, W.D (1971) O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
– “A criatividade e suas origens”
__ Winnicott, Donald W (1986) Tudo Começa em Casa. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
– “A cura”
___ Dias, O Elsa. O cuidado como cura e como ética. São Paulo: Winnicott e prints vol 5 no 2, 2010