Para Winnicott a existência é psicossomática, compreendendo-a pela manifestação intima e natural do vínculo entre a personalidade de um indivíduo e o seu corpo, ou seja, entre a psique e o soma. Ele discorda da forma pela qual a medicina psicossomática contextualiza a natureza dos transtornos psicossomáticos para abarcar os fenômenos onde a doença se manifesta no físico, mas a causa primeira se relaciona com a vida emocional do indivíduo. O autor apresenta a complexidade deste tema sob a luz da teoria do amadurecimento humano, destacando que é na falha inicial da tarefa de alojamento da psique no corpo ou personalização, no estágio de dependência absoluta, que o verdadeiro distúrbio psicossomático se encontra.

INTRODUÇÃO

Conquistar a tarefa de personalização no processo de amadurecimento é para Winnicott, em síntese, o bom resultado na relação de uma mãe com o seu bebê. Neste encontro o bebê pode receber da presença e colo da mãe a segurança para deixar-se reunir paulatinamente em uma unidade, em um si mesmo. Para tanto, a conquista desta tarefa que favorece o sentimento de realidade ancorada no corpo (morada, habitar no próprio corpo), necessita de cuidados maternos previsíveis e confiáveis que sustentem uma situação global, ou seja, necessita de um ambiente facilitador. Caso contrário, toda esta conquista fracassa e os verdadeiros distúrbios psicossomáticos se apresentam.

JUSTIFICATIVA

Winnicott não considera que possamos chamar de transtorno psicossomático a dor de estômago, a dor de cabeça, a diarréia que nos acontecem em um dia de prova ou situação semelhante. O indivíduo se apresenta inteiro, dizendo de outra forma, psicossomaticamente. Isto faz parte do viver e mostra o corpo compartilhando as vicissitudes da alma na tarefa de amadurecer até a morte. O autor elabora o conceito de saúde que é tolerante à doença, abarcando assim a própria batalha do viver, de ter experiências, de ter sintomas e de até adoecer sem, no entanto, considerar possíveis transtornos como psicossomáticos que necessitam de uma especialidade em psicossomática para tratá-los.

OBJETIVO

Meu objetivo é com este trabalho é o de apresentar o distúrbio psicossomático pelo olhar de Winnicott.

DESENVOLVIMENTO

A medicina psicossomática surge no século XX para abarcar os casos clínicos que não podiam ser compreendidos e tratados pelo referencial da medicina puramente organicista/ biológica. E tem como suporte para entender e interpretar os transtornos psicossomáticos a psicanálise tradicional, segundo os modelos da neurose ou da depressão- conversão histérica e a somatização.

Segundo Freud, o sintoma físico pode estar relacionado a conversão histérica- que é o subproduto da repressão, o sintoma orgânico é a representação física do conflito intrapsíquico enquanto que, na neurose de ansiedade ou neurose atual, o sintoma físico resulta de sensações físicas as quais foi negado acesso à representação psíquica, ou seja, o fenômeno consiste em que as experiências sensoriais falharam em ser mentalizadas (apud Elsa). Estes distúrbios, segundo a psicanálise tradicional, são explicados considerando que o indivíduo já tem, a priori, capacidades intelectuais/mentais para a memória e a representação que dependem do funcionamento do aparelho psíquico e das forças libidinais circundantes.

Para Winnicott, tais capacidades são esperadas em estágios mais desenvolvidos e com indivíduos mais amadurecidos/integrados. Mesmo assim, não são dadas como garantidas, mas conquistadas ao longo do amadurecimento pessoal e totalmente dependente do ambiente. Ele elabora o distúrbio psicossomático oriundo de uma raiz mais primitiva, na falha inicial do alojamento da psique no soma no estágio de dependência absoluta.

Winnicott não deixa de considerar as várias formas pelo qual o corpo é afetado pelos estados psíquicos, mas estas interações ocorrem em etapas posteriores da infância e se relacionam com a saúde em si ou com os distúrbios psíquicos de qualidade neurótica. A excitação da vida instintiva e as fantasias geram ansiedades e isso afeta o corpo; a excitação deveria chegar ao clímax para depois relaxar, mas o viver solicita este gerenciamento de clímax que falha em seu fluxo natural e isso já é o suficiente para uma má absorção no corpo e o surgimento de desconfortos e limitações físicas variadas. Assim como o humor, onde o conflito inconsciente entre o amor e o ódio, entre a construtividade e de destrutividade que geram temor e culpa, travam grandes lutas no mundo interno afetando o corpo e refletindo no tônus e rigidez muscular, na postura, na vitalidade etc. Mas veremos adiante que, segundo Winnicott, os verdadeiros distúrbios psicossomáticos se relacionam mais com os transtornos da personalidade com qualidade psicótica, pois o que está em jogo não é o efeito da psique sobre o corpo, mas a fraqueza ou ausência de coesão psicossomática, ou seja, o que está em jogo, é a própria pessoa como uma unidade.

A Coesão Psicossomática- A conquista do corpo como morada-

– Ambiente Facilitador e a Elaboração Imaginativa

Corpo vivo em Winnicott é um conceito que se apoia na experiência que se firma na relação íntima entre o corpo do bebê sustentado pelos cuidados no colo de sua mãe. Trata-se então de um corpo (soma) envolvido por um ambiente e por cuidados que constituem a base do acontecer humano e que, no início da vida, as sensações, os movimentos precisam ser recolhidos por outro (mãe devotada e suficientemente boa) para que ocorra a elaboração do estar vivo fisicamente. A sustentação e suporte oferecidos ao bebê favorecem a continuidade do ser, o que Winnicott chama de holding – o sustentar a criança, tanto corporalmente quanto no tempo.

Assim sendo, o ambiente (mãe) que favorece o amadurecimento do bebê para Winnicott não se refere em hipótese alguma, então, apenas aos cuidados dispensados fisicamente, ou seja, aos cuidados de higiene, de alimentação no sentido nutricional, de aquecer, de acalentar e de embalar até o sono. O autor assinala a importância destes cuidados no sentido de favorecer o sentimento do bebê de estar vivo em seu próprio corpo, vivo no sentido de galgar e conquistar o si mesmo integrado em uma unidade psicossomática. E é essa complexa integração que ocorre quando a mãe adaptada ao seu bebê consegue perceber por empatia o que ele necessita porque ela também se encontra em unidade, em uma presença psicossomática. E por tão sintônicos os gestos de ambos, o bebê vai integrando suas sensações e necessidades, nos gestos, nos movimentos em seu próprio corpo e aí se encontra o conceito do que Winnicott chama de elaboração imaginativa das funções corporais ou psique. A psique registra/absorve as impressões das experiências corporais iniciais do estar vivo, da vitalidade de tecidos, de funções e do movimento até as experiências futuras (sensoriais/motoras, mentais, intelectuais) de um modo de ser psicossomático. Também a elaboração imaginativa não é estanque e dada como completa, ela avança em suas tarefas. De início ela elabora as funções corpóreas, partes anatômicas, sensações, excitações desde experiências primitivas do nascimento e de todo processo do amadurecimento tornando o corpo um soma pessoal; é uma tarefa de temporalização e historiação. Mas também evolui para tarefas mais sofisticadas como a constituição do si mesmo, da imaginação criativa, sonhar, brincar e de todas as conquistas do viver no mundo dos adultos (arte, religião). (Loparic, 2000 p. tal 18).

Um dos resultados principais da elaboração imaginativa é a transfiguração do funcionamento corpóreo em comportamento humano (LOPARIC, p. 18)

Emergindo do que se poderia chamar elaboração imaginativa de funções corporais e de todos os tipos e de acúmulo de memórias, a psique (especificamente dependente do funcionamento cerebral) liga o passado já vivenciado, o presente e a expectativa de futuro, uns aos outros, dá sentido ao sentimento do eu, e justifica nossa percepção de que dentro daquele corpo existe um indivíduo (Winnicott, 1990 p. 46).

É da complexa vinculação entre a psique e o soma na tarefa de personalização que surge, segundo Winnicott (2000), a mente. Seu surgimento deve ser gradual pela adaptação decrescente que a mãe naturalmente faz com o seu bebê, o que ele denomina negligência viva, passando de uma dependência absoluta para uma relativa por meio da compreensão mental.

No entanto, é fundamental que a capacidade mental venha a seu curso, ou seja, posterior a uma boa coesão/integração entre a psique e soma facilitada pelo ambiente, Caso contrário, pode ter em curso a descontinuidade do amadurecimento pessoal e assim, o incremento de uma mente como uma formação patológica como veremos a seguir; a mente fica dissociada do corpo elaborado imageticamente, ou seja, da integração psique e soma.

– Alojamento da Psique no Soma – Personalização –

Especificamente, é no cuidado em manejar e sustentar a criança em seus estados excitados, chamado por Winnicott de handling que é favorecida a tarefa de personalização. Este tipo de cuidado faz parte do holding que é o sustentar total. Pois o envolvimento dos braços da mãe que contem a criança por todos os lados, dando a ela a oposição e consistência necessárias para reafirmar em seus gestos um encontro vivo, devolve ao bebê a sensação de seu próprio corpo. Este segurar receptivo e ativo faz com que a criança tenha uma boa experiência com seu corpo, favorecendo uma boa coordenação motora e tônus muscular. A vivacidade de cada bebê no colo de sua mãe (também com sua vivacidade) é que vai gerar a qualidade e intensidade desta oposição que retornam e reforçam no bebê seu sentido de existir, de realidade. A este tipo de envolvimento e cuidado materno, Winnicott chama de mãe- objeto.

São as boas experiências nos estados excitados que proporcionam as boas experiências dos estados tranqüilos e que também favorecerem a integração, a coesão psicossomática. Neste momento de entrega absoluta do bebê nos braços da mãe, diz Winnicott, ele vive uma experiência de não-integração. Esta experiência tão cara para o amadurecimento do bebê só é possível de ser vivida se o ambiente for confiável, previsível e não invasor; a este tipo de cuidado materno, Winnicott chama de mãe-ambiente.

A Incerta Morada da Psique no CorpoAmeaça ou ruptura da coesão psicossomática-

– A falha Ambiental e as Defesas

Quando o ambiente fracassa, ocorre falha na elaboração imaginativa, na integração psique e soma e uma descontinuidade da existência se manifesta; o amadurecimento pessoal perde seu curso…

A defesa que surge desta ameaça da coesão psicossomática, ou melhor, dizendo, do aniquilamento do próprio ser, é a despersonalização. É uma defesa contra a própria integração e que “protege” do temor de aniquilamento. O ambiente ofertou alguma possibilidade de integração, porém, de maneira precária…

“… a perda do contato da criança ou do paciente adulto com o corpo e com o funcionamento corporal, implicando isto a existência de algum outro aspecto da personalidade” (EP, pg 203)

O falso si-mesmo também é uma defesa que emerge da falha da coesão psicossomática, pois o bebê com apenas um potencial de ego, é forçado a defender-se demasiadamente de um ataque da falha ambiental com uma de suas “armas” que é a dissociação,lançando mão de uma precoce compreensão mental de suas experiências; a mente é precocemente utilizada pelo bebê para tentar substituir o ambiente, uma vez que este manteve um padrão de falha que o bebê não tem como assimilar no âmbito da sua onipotência. A mente fica dissociada do corpo psíquico (elaborado imageticamente) e assim, a ancoragem de si passa a ser a mente e não o corpo vivo.

Nesta situação, muitas vezes os sintomas e as doenças revelam esta dissociação e pedem que a psique volte a se relacionar com o soma e se distancie da mente. Mas é neste momento que, segundo Winnicott (1990), há uma esperança de que a comunicação seja recebida e surja uma chance para que as forças integradoras tenham êxito.

É importante ter sempre em mente o seguinte ponto sobre os problemas psicossomáticos: um elemento físico da doença empurra a doença psicológica de volta para o corpo. Isto é tremendamente importante por constituir uma defesa contra a fuga para o puramente intelectual, que levaria o indivíduo a perder uma parte do vínculo entre a psique e o soma. (WINNICOTT, 1990, p. 185).

– O Verdadeiro Distúrbio Psicossomático

O que caracteriza o verdadeiro distúrbio psicossomático é este forte sistema de defesas primitivas como a despersonalização, cisão e vários tipos de dissociações na organização do ego do paciente para defendê-lo da vivência da repetição das agonias impensáveis. Na clínica isto se mostra na busca do paciente pela cura de diversos sintomas físicos sob a forma de uma persistente “dispersão dos agentes responsáveis”. Ao estar desintegrado, o paciente não é aniquilado pela perda de integração porque ele já vive semi-integrado. Sendo a despersonalização ativa então, o modo como o indivíduo se defende da ameaça de despersonalização ou de desintegração por fracasso ambiental mantendo a organização defensiva subjacente (DIAS, pg.116).

O distúrbio psicossomático é uma defesa tanto quanto ao aniquilamento pelo perigo da integração, como também, contra a perda de uma coesão psicossomática representada pela fuga ao puramente intelectual ou sensorial e sexual compulsivos. Através dos sintomas, o paciente se mantém em contato com o corpo e com a dependência de cuidado. Este distúrbio se relaciona, segundo Winnicott, aos distúrbios de qualidade psicótica e não neurótica, pois se deram no estágio da dependência absoluta. “ A doença psicossomática é muitas vezes pouco mais que o reforço do elo psicossomático em face da ameaça de rompimento do mesmo” (WINNICOTT,1983, p. 201).

Winnicott considera como sendo objetivo da doença psicossomática conduzir a psique para longe da mente, de volta à associação íntima com o soma, estendendo a possibilidade de saúde para além das ausências de patologias e deficiências físicas e emocionais, portanto claramente perceptíveis. Para Winnicott, a fuga em direção à sanidade não é sinônimo de saúde e diz que a saúde é tolerante com a doença. E assinala que há duas formas de pessoas, aquelas que tiveram uma boa provisão ambiental e tendem a aproveitar a vida com saúde, alegremente, e aquelas que viveram experiências traumáticas e decepções ambientais e que serão candidatas à doença.Mas Winnicott completa:

Existe, no entanto, um grupo intermediário e poderíamos incluir aquelas que trazem consigo a experiência de ansiedades impensáveis ou arcaicas, e que estão mais ou menos bem defendidas contra recordar-se de tal ansiedade, mas que, não obstante, vão usar qualquer oportunidade que se apresente para adoecer ou ter um colapso a fim de se aproximar daquilo que é terrível – e por isso impensável – O colapso raramente leva a um resultado terapêutico, embora se deva reconhecer um elemento positivo no colapso. Às vezes, o colapso conduz a uma espécie de cura, e então aparece de novo a palavra ‘saúde’ (WINNICOTT,1999, p.15).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“[…] é preciso lembrar que os estágios iniciais jamais serão verdadeiramente abandonados, de modo que ao estudarmos um indivíduo de qualquer idade podemos encontrar todos os tipos de necessidades ambientais […]”. WINNICOTT, 1983, p.179)

Winicott nos convida a refletir sobre a dinâmica ou situação que se estabelece na relação “doente” e o profissional da saúde e, notadamente, o fisioterapeuta quando descreve os distúrbios psicossomáticos. Pois o doente, de volta a uma condição de dependência, leva naturalmente o profissional para a posição dos que respondem às necessidades, ou seja, à adaptação, à preocupação e à confiabilidade, cura, no sentido de cuidado. E sugere que os profissionais se especializem em “curar – cuidar”, que é uma extensão do conceito de “sustentar” (holding), mais do que em “curar erradicando agentes do mal”; devemos aplicar um tratamento no sentido de facilitar o crescimento. Winnicott (1999) diz que o “sustentar” pode ser feito, com sucesso, por alguém que não tenha o menor conhecimento intelectual daquilo que está ocorrendo com o indivíduo, e o que se exige é a capacidade de se identificar, de perceber o que se sente.

No meu trabalho como fisioterapeuta, a partir da teoria de Winnicott, essa questão se mostra com frequência, ou seja, o corpo adoecido se apresenta como uma tentativa de reencontrar/encontrar sua morada (centro de gravidade existencial). Faz-se necessário o estabelecimento de confiança na relação terapêutica, confiança essa dada pelo que se sente, pelo que se percebe de imaturo no processo de amadurecimento de uma pessoa. Como a mãe suficientemente boa, o profissional empaticamente adapta-se as necessidades e possibilidades de seu paciente e favorece a complexa elaboração de estar vivo fisicamente e em unidade no próprio corpo e assim, a saúde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Winnicott, Donald W. (1990/1988). “Integração”. In: D. Winnicott. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago.

Winnicott, Donald W. (1994/1989). Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas ___ “Fisioterapia e relações humanas”, in Winnicott 1989a. ___ “As bases para o si-mesmo no corpo”, in Winnicott 1989a:

Winnicott, Donald W(2000/1955). “Adaptabilidade à realidade”. In: d. Winnicott. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.

Dias, Elsa O. ( 2003) A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.

Dias, Elsa 2008: “O distúrbio psicossomático em Winnicott”, in Rubens Marcelo Volich, Flávio Carvalho Ferraz e Wagner Ranña (org.): Psicossoma IV, corpo, história, pensamento.

Loparic Z. 2000: “O animal humano”, in Revista Natureza humana, 2000, vol. 2 no.2