A observação de pacientes em minha prática clínica como fisioterapeuta há quase 30 anos e a necessidade de cuidar de uma pessoa inteira e não só de seu corpo biomecânico, puseram-me em busca de fundamentação para um corpo vivo.
Corpo vivo em Winnicott é um conceito que se apóia na experiência que se firma na relação íntima entre o corpo do bebê sustentado pelos cuidados no colo de sua mãe. Trata-se então de um corpo (soma) envolvido por um ambiente confiável que constitui a base do acontecer humano e que, no início da vida, as sensações, os movimentos precisam ser recolhidos por outro (mãe devotada) para que ocorra a elaboração do estar vivo fisicamente e justifique que dentro daquele corpo existe uma pessoa. Daí o autor se referir ao alojamento da psique no corpoou personalização para descrever a tarefa e conquista da relação entre a psique e o corpo no processo do amadurecimento humano.
INTRODUÇÃO
Corpo vivo em Winnicott é um conceito que se apóia na experiência que se firma na relação íntima entre o corpo do bebê sustentado pelos cuidados no colo de sua mãe. Trata-se então de um corpo (soma) envolvido por um ambiente e por cuidados que constitui a base do acontecer humano e que, no início da vida, as sensações, os movimentos precisam ser recolhidos por outro (mãe devotada) para que ocorra a elaboração do estar vivo fisicamente.
Daí o autor se referir ao alojamento da psique no corpo, processo chamado por ele de personalização, para descrever a conquista da relação íntima entre a psique e o corpo. Esta tarefa de alojamento da psique no soma é uma conquista a ser alcançada e que dependerá não só de fatores genéticos, físicos e funcionais, mas também de como este processo se deu, ou melhor, como este “físico/ soma” foi sustentado pelo ambiente que, em primeira instância, é a presença e o colo seguro da mãe.
JUSTIFICATIVA
A escolha deste tema justifica-se pelo fato de que o mesmo nos ajuda na compreensão da relação entre psiquismo e corporeidade, relação esta que não é estudada dentro da psicanálise tradicional, bem como dentro da fisioterapia convencional.
OBJETIVO
Meu objetivo neste trabalho é apresentar a tarefa de alojamento da psique no soma da teoria do amadurecimento de Winnicott por encontrar neste conceito o fundamento para a necessidade de mudança na atitude clínica na fisioterapia pois, fundamentada como está nas ciências biológicas, não contempla a complexidade do corpo vivo de uma pessoa total, onde há a psique e o soma e não apenas o corpo mecânico e funcional.
DESENVOLVIMENTO
Winnicott apresenta em sua teoria uma compreensão do homem em sua totalidade (psique e soma) e dependente do ambiente. Parte das suas pesquisas focaliza as etapas mais primitivas do desenvolvimento humano,observando os bebês com suas mães e as crianças. Outra frente dos seus estudos volta-se para os pacientes gravemente acometidos por doenças mentais (psicoses). Concentrou-seem um período anterior ao que a criança já anda com segurança, período em que Freud localiza a origem da neurose de adultos. Este ponto de partida é fundamental para compreender a importância que este autor dá ao corpo e à relação mãe-bebê. Pois aí estão as raízes da integração psique-soma,fundamental em sua teoria.
O autor aponta que, mesmo tendo o homem uma tendência inata a integração numa unidade, que é própria da natureza humana, ele necessita da presença de outro que favoreça as conquistas para o seu amadurecimento. A sustentação e suporte oferecidos ao bebê favorecem a continuidade do ser, o que Winnicott chama de holding – centro de gravidade do ser na estrutura ambiente-indivíduo. O holding é o sustentar da criança, tanto corporalmente quanto no tempo; é associado à função do esqueleto na sustentação corpórea. Assim, o corpo sustentado pela ossatura constrói oposições à força da gravidade e futuramente alcança espaços e um lugar para sua vida no mundo. Podemos intuir que, ao pegarmos um bebê, devemos ter o máximo de cuidado para não lhe causar susto no momento de tocá-lo; devemos envolvê-lo de forma a criar um “ninho” que sustente sua cabeça debruçada suavemente sobre o seu corpo no momento em que o transferimos para um outro lugar. Este gesto mostra o quão frágil é o seu físico. Mas, é a partir desta atitude que podemos compreender, segundo Winnicott, que o psiquismo do bebê, frágil como o seu físico, necessita de uma presença cuidadosa e receptiva que o sustente para que ele alcance um desenvolvimento emocional/pessoal sadio.Dessa maneira, propõe que as conquistas do amadurecimento são feitas ao longo do tempo e na dependência de um ambiente confiável, principalmente no início de nossas vidas, pois tudo está para ser conquistado, se tudo der certo… A pontuação “se tudo der certo” refere-se exatamente a complexidade do encontro da mãe com o seu bebê, da capacidade dessa mãe ofertar, inicialmente, nos cuidados físicos, as adaptações necessárias ao seu bebê. A mãe que consegue identificar-se e adaptar-se às essas necessidades é para Winnicott a mãe suficientemente boa e nesse relacionamento está a base para desenvolvimento humano em seus vários aspectos. Estas experiências evoluem para as primeiras inter-relações, que incluem todas as operações mentais, acumulam as memórias do passado, do presente e as expectativas do futuro; estas experiências darão o sentimento de um “eu” e justificam a percepção de que dentro daquele corpo existe um indivíduo. A toda essa complexa conquista Winnicott conceituou como psique ou elaboração imaginativa.
Para este autor, não somos um físico que cresce e se desenvolve e uma mente que progride intelectualmente e adquire representações. Ele considera que nossa existência é psicossomática, ou seja, há o aspecto físico (soma) e o aspecto psicológico (psique) e que a mente é um ornamento (uma coroação) da integração/coesão entre a psique e o soma. Pontua que não faz sentido pensarmos que os termos “mente” e “físico” traduzem fenômenos opostos, mas sim, a psique e o soma. Pois a psique não corresponde apenas ao funcionamento mental. Por isso, Winnicott distinguiu o amadurecimento pessoal do crescimento corpóreo dizendo que há o corpo físico em seu aspecto biológico, anatômico e dependente da genética herdada, mas, há também o aspecto corporal que se refere ao amadurecimento pessoal/emocional. O autor deixa claro que a psique e o soma têm suas “especificidades” e aponta, justamente, a eliminação de problemas físicos (lesão cerebral, por exemplo) para discorrer sobre a importância da coesão psicossomática; ambos estão intimamente interligados e tendem à integração.
Retomando alguns conceitos:
Soma é corpo vivo que vai sendo personalizado pela psique. Dizendo de outra forma, a psique registra/absorve as impressões das experiências corporais do estar vivo, da vitalidade de tecidos, de funções e do movimento. Esta complexa vivência da psique com o corpo/soma é conceituada por Winnicott de elaboração imaginativa das funções corpóreas, que possibilita ao homem o sentido do estar vivo fisicamente, a aquisição da memória, a sua mente. No entanto, é fundamental que a capacidade mental venha a seu curso, ou seja, a posteriori de uma boa coesão/integração entre a psique e soma facilitada pelo ambiente Caso contrário, podemos ter em curso a descontinuidade do amadurecimento pessoal e assim, o incremento para doença. Saúde para Winnicott é a continuidade do Ser e que está totalmente dependente do ambiente, principalmente no estágio primitivo do desenvolvimento. E diz que a influência do ambiente pode levar a futura pessoa a buscar uma confirmação de que vale a pena viver, partindo para experiências, ou se retrairá, fugindo do mundo. Como diz o autor, comparando a relação do bebê com o ambiente, é como uma bolha que cresce enquanto a pressão externa não é superior a sua própria pressão de crescimento e caso, a pressão externa seja superior (ambiente invasor), há o colapso, a interrupção da continuidade do ser. O indivíduo se aniquila na base de seu acontecer.
Winnicott descreve as primeiras tarefas (temporalização, espacialização, personalização) a serem conquistas no estágio de dependência absoluta (que são os primeiros meses de vida do bebê, de 3 a 4 meses), durante o período da primeira mamada teórica. Este conceito de primeira mamada teórica é usado para descrever as primeiras experiências da amamentação. No entanto, em hipótese alguma estas experiências se referem apenas ao ato de amamentar para alimentar e nutrir fisicamente o bebê, mas sim como estas experiências devem acontecer. Ou seja, quando o bebê busca o seio por fome, por contato, etc., ele encontra (cria) o seio da mãe porque esta o oferta por intuir a necessidade expressa no gesto de seu bebê. E não ao contrário, a mãe tentando alimentar seu filho, impede sua busca, seu gesto espontâneo e com isso, o início de uma complexa conquista para seu desenvolvimento pessoal sadio.
Embora estas tarefas aconteçam concomitantemente, há experiências peculiares de cuidados vividos a cada uma delas, deter-me-ei a tarefa de alojamento da psique no soma (personalização). Como já foi dito, o bebê no colo de sua mãe é o fenômeno onde se desdobra toda as experiências vividas importantes para problemática, aqui no presente trabalho, da tarefa de conquista o alojamento da psique no soma.
Podemos observar nos bebês recém-nascidos e durante os primeiros meses, suas necessidades de serem alimentados, limpos, aquecidos e acalentados para o repouso e sono, mas ao seu tempo… Ao contrário podemos assistir o quanto podem alongar-se os momentos de choro e agitação. Este fenômeno natural no cuidado de uma mãe com as necessidades básicas de seu bebê foi descrito e conceituado por Winnicott nos estados tranqüilos e estados excitados. Este ponto da teoria delimita o que eu já mencionei anteriormente que são as aquisições de tarefas que aconteçam quase que simultaneamente nas experiências dos cuidados destes estados tranqüilos e excitados. Enquanto os estados tranqüilos são momentos para a integração no tempo, no espaço, e de alojamento da psique no soma, os momentos excitados estão relacionados com o início do contato com a realidade.
Os estados excitados
Um bebê ao sentir fome, vive um estado de excitação e esta advém de duas fontes: a instintualidade e a motilidade, sendo estas manifestações do estar vivo. Para Winnicott, estes impulsos vêm e voltam e não constituem a vida do bebê, mas eles pedem uma ação e depois retornam ao estado de repouso por satisfação (como em qualquer homem adulto ou criança e também nos animais). Embora sobre estas manifestações se enraízem aquisições da sexualidade e da agressividade, Winnicott pontua sobre a instintualidade primitiva. Dias esclarece:
… Winnicott não fala propriamente de instintos, mas em tensões ou excitações instintuais. Ele reserva o termo “instinto”, ou “vida instintual”, para quando a instintualidade for integrada e significada pelo indivíduo como algo que lhe concerne, vivida como uma experiência pessoal, com todas as suas conseqüências… (DIAS, 2003, p.176)
Portanto, quando a mãe identificada com o seu bebê, atende “as exigências instintuais” ela evita não a frustração deste, mas a possibilidade de continuidade de seu ser. Visto que “as exigências instintuais” podem ser ferozes e assustadoras, pois o bebê não sabe de nada acerca de sua necessidade ou do que pode ser esperado. Assim, a tensão instintual sendo abarcada pelo ambiente (mãe) favorece a coesão psicossomática e o si mesmo. A satisfação não se resume ao aplacamento do instinto, requer uma vivência global do bebê de ser seguro, olhado, amado pela mãe (comunicação e mutualidade) e assim expressar sua continuidade de ser durante a experiência instintual, em seu corpo imaginativamente elaborado que se movimenta e se relaciona.
A tarefa de alojamento da psique no soma é facilitada neste momento onde a vivacidade/voracidade (instinto e motilidade) do bebê é contemplada como uma experiência completa e relacional (impulso amoroso primitivo). O movimento do bebê é vivido integralmente com a expressão de suas sensações, tecidos e músculos que promovem um gesto espontâneo em busca de vida e que, essencialmente, necessita encontrar na relação (nos objetos) uma oposição satisfatória à seus impulsos agressivos. A vivacidade de cada bebê no colo de sua mãe (também com sua vivacidade) é que vai gerar a qualidade e intensidade desta oposição que retornam e reforçam no bebê seu sentido de existir, de realidade (sendo neste momento uma realidade subjetiva). A este tipo de envolvimento e cuidado materno, Winnicott chama de mãe- objeto.
A importância da oposição, como qualidade do movimento gerado no cuidado da mãe com o seu bebê, pontua como é importante que o ambiente receba e retorne o gesto e não o invada. Pois disso, decorre saúde ou a doença, conseqüentemente, continuidade do ser ou reação a invasão e interrupção do gesto e do ser.
É importante pontuar que Winnicott admite a existência de uma destrutividade/agressividade (comer, devorar, morder) que é inerente a esse impulso amoroso primitivo por estar vivo e de onde também advém o processo de integra-se e amadurecer. “ O exercício incompadecido do impulso instintual, além de ser a mais primitiva das experiências de integração, é altamente gratificante para o bebê” (DIAS, 2003, p. 187).
Especificamente, é no cuidado em manejar e sustentar a criança em seus estados excitados, chamado por Winnicott de handling* que é favorecida a tarefa de personalização. Este tipo de cuidado faz parte do holding que é o sustentar total. Pois o envolvimento dos braços da mãe que contem a criança por todos os lados, dando-a a oposição e consistência necessárias para reafirmar em seus gestos um encontro vivo, devolve ao bebê a sensação de seu próprio corpo. Este segurar receptivo e ativo faz com que a criança tenha uma boa experiência com seu corpo, favorecendo uma boa coordenação motora e tônus muscular. No colo da mãe, a criança começa habitar em seu próprio corpo e no mundo.
No entanto, é também da possibilidade de viver boas experiências nos estados excitados que os estados tranqüilos podem ser bem vividos e também favorecerem a integração, a coesão psicossomática.
Estados Tranquilos
Quando um bebê não está excitado buscando e encontrando (criando) objetos para satisfazer suas demandas de fome, sede, conforto, é comum presenciarmos o bebê saciado e afagado no colo ou no berço. Winnicott descreve esse fenômeno comumente vivido nos cuidados a um bebê como os estados tranqüilos. Um bebê que experencia satisfatoriamente sua vitalidade nos estados de excitação motora, contemplado pela presença viva e receptiva da mãe pode, bem aventuradamente, usufruir do descanso e sono. Neste momento de entrega absoluta do bebê nos braços da mãe, diz Winnicott, ele vive uma experiência de não-integração. Esta experiência tão cara para o amadurecimento do bebê só é possível de ser vivida se o ambiente for confiável, previsível e não invasor. Pois a mãe está ali para acolher, recolher e integrar o seu bebê, permitindo sua emersão deste estado de quietude e solidão, a seu tempo. Este tipo de cuidado materno, Winnicott chama de mãe-ambiente.
A integração também é estimulada pelo cuidado ambiental. Em psicologia, é preciso dizer que o bebê se desmancha em pedaços a não ser que alguém o mantenha inteiro. Nestes estágios o cuidado físico é um cuidado psicológico. (WINNICOTT (1990) “Integração”. In: D. Winnicott (1990/1988 w18). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago. p. 137)
É importante pontuar que Winnicott, ao descrever os fenômenos nos estados tranqüilos, se refere à um isolamento saudável onde a não-integração é fundamental pois, é na vivência desse mundo subjetivo que brotam os gestos espontâneo, expressão da criatividade originária que ofertará na vida adulta a riqueza de uma espontaneidade de um si mesmo.
No entanto ele salienta que se o ambiente não for confiável, pode acontecer o que ele chama de desintegração, que é uma defesa contra a integração. Pois o ambiente ofertou alguma possibilidade de integração, porém, de maneira precária e o que se dá então, é uma reação a ansiedade a esta experiência não provedora. Esta defesa é uma reação ao caos da experiência recidiva da descontinuidade do ser, muito presente nas esquizofrenias.
CONCLUSÃO
Alcançar esta tarefa no processo de amadurecimento é para Winnicott o bom resultado na relação de uma mãe com o seu bebê. Neste encontro o bebê pode receber da presença e colo da mãe a segurança para deixar-se reunir paulatinamente em uma unidade, em um si mesmo. Para tanto, a conquista desta tarefa que favorece o sentimento de realidade ancorada no corpo (morada, habitar no próprio corpo), necessita de cuidados maternos que sustentem uma situação global. Ou seja, o bebê vive satisfatoriamente seus estados tranqüilos e excitados porque sua mãe adaptou seu manejo tanto para o aconchego envolvente e firme quanto para receber e opor-se aos impulsos e movimentos excitados. A coesão psicossomática se reafirma em cada experiência que o bebê vive de emergir do seu estado não integrado para encontrar (criar) os objetos em sua realidade e mundo subjetivos.
É especialmente no início que as mães são vitalmente importantes, e defato a tarefa da mãe de proteger o seu bebê de complicações que ele ainda não pode entender, dando-lhe continuamente aquele pedacinho simplificado do mundo que ele, através dela, passa a conhecer. (WINNICOTT, 2000). “Adaptabilidade á realidade”. In: D. Winnicott (2000/1955). Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. p 228).
A confiabilidade fornecida pelo ambiente estabelece no corpo uma morada. Este sentimento é fundante para a saúde de uma pessoa, segundo Winnicott.
No meu trabalho como fisioterapeuta, a partir da teoria de Winnicott, essa questão se mostra com freqüência, ou seja, o corpo adoecido se apresenta como uma tentativa de reencontrar/encontrar sua morada (centro de gravidade existencial). Faz-se necessário o estabelecimento de confiança na relação terapêutica, confiança essa dada pelo que se sente, pelo que se percebe de imaturo no processo de amadurecimento de uma pessoa.
Como a mãe suficientemente boa, o profissional empaticamente adapta-se as necessidades e possibilidades de seu paciente e favorece a complexa elaboração de estar vivo fisicamente e em unidade no próprio corpo e assim, a saúde.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Winnicott, Donald W. (1990/1988). “Integração”. In: D. Winnicott (1988 w18). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago.
Winnicott, Donald W. (1994/1989). Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas ___ 1969g: “Fisioterapia e relações humanas”, in Winnicott 1989a. ___ 1971d: “As bases para o si-mesmo no corpo”, in Winnicott 1989a:
Winnicott, Donald W(2000/1955). “Adaptabilidade à realidade”. In: d. Winnicott (1955a w6). Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.
Dias, Elsa O. ( 2003) A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.